Origem
A origem da corporação de bombeiros de Estarreja esteve ligada a um conjunto de situações que desencadearam a necessidade da criação da mesma.
Incêndio da Igreja de Beduído
Decorria a madrugada do dia 27 de Março de 1922, quando um violento incêndio destruiu, quase por completo, a Igreja de S. Tiago de Beduído. O Padre Donaciano de Abreu Freire tinha chegado para chefiar os destinos da paróquia no início do mês, mas, de acordo com o Jornal de Estarreja de 19 de Março, apenas terá fixado residência durante a semana que antecedeu o violento incêndio. Certo é que na madrugada de domingo para segunda-feira o Padre Donaciano já estava a residir em Beduído, pois assistiu ao pavoroso espectáculo. Foi o próprio que, após o primeiro choque emocional e de alerta da população, partiu para Ovar a pedir auxílio aos Bombeiros daquela vila. Apesar da rápida resposta, quando chegaram já nada havia a fazer.
O incêndio começou na sacristia, que foi rapidamente devorada, alastrou para a capela-mor. Na biografia do Padre Donaciano de Abreu Freire, o Cónego Filipe de Figueiredo retracta da seguinte forma o incêndio na Igreja de S. Tiago:
Foram grandes os esforços para salvar esta (capela-mor) parte distinta do tblockquoteplo, mas toda se perdeu!
Ao ver-se a impossibilidade de salvar isto, todos os esforços concorreram para salvar ao menos o corpo da Igreja, arrancando-se altares e cotando-se o tecto. Mas tudo o que era de melhor, tudo o que era de valor se perdeu!
Os jornais da época deram grande eco do incêndio. “O Jornal de Estarreja” interrompeu as férias para dar notícia do trágico acontecimento, a 31 de Março, com o título: “A IGREJA DE S. TIAGO DE BEDUÍDO DESTRUÍDA POR UM INCÊNDIO”.
Este facto veio agora encher de tristeza e de dor toda a freguesia.
A Igreja de S. Tiago de Beduído, o mais antigo templo destas redondezas, que tinha uma história belíssima e que era uma relíquia sagrada deste povo, para a qual convergiam todas as suas dedicações, todas as suas simpatias; que tinha uma obra de talha como nenhuma outra deste concelho e como poucas do distrito, foi pasto das chamas na manhã do dia 27 do corrente.
Também o “Concelho de Estarreja”, a 1 de Abril, fez grande eco do incêndio da Igreja Matriz de Beduído, com o título “Pavoroso Incêndio”
Na madrugada de segunda-feira um terrível incêndio devorou a Capela-mor e sacristias da igreja paroquial de Beduído, uma das mais importantes e ricas deste concelho.
Até à hora em que escrevemos nada fez supor que não criminosa tenha contribuído para esse incêndio que, se não fora o auxílio prestado pelo povo daquela freguesia, teria reduzido a um montão de cinzas esse sumptuoso edifício, que possuía na Capela-mor uma obra digna do maior apreço em talha dourada.
Foram chamados os Bombeiros de Ovar, mas quando chegaram pouco serviço puderam prestar visto que o fogo estava focalizado e quase extinto.
Este acontecimento veio emocionar o ilustre e reverendíssimo pároco daquela freguesia Sr. Padre Donaciano de Abreu Freire, que de olhos marejados de lagrimas implorava e suplicava, numa cruciante angústia, o auxílio de quantos pudessem contribuir para que o incêndio não devorasse a igreja sob cujas abobadas começara há pouco de exercer a sua missão de pastor.
Logo nesse momento se sentiu a falta de uma corporação de bombeiros em Estarreja. A destruição quase completa da Igreja de S. Tiago, a ida do Padre Donaciano a Ovar pedir socorro aos bombeiros locais, o tempo despendido na distância, a ideia de que um socorro mais rápido teria minimizado a destruição fizeram sentir a importância da criação dos Bombeiros Voluntários de Estarreja. O Padre Donaciano tornou-se um dos principais impulsionadores.
O 13 de Julho de 1924
Muitos foram os apelos públicos para a criação dos Bombeiros Voluntários de Estarreja. Desde pedido à população no “Jornal de Estarreja” e no “Concelho de Estarreja”, a subscrições lideradas por “próceres” do concelho. Acima de tudo, foi um conjugar de esforços e de determinação de muita gente anónima, que se dedicou a esta causa.
O Dr. Santos Reis é apenas um desses exemplos de enaltecimento colectivo, numa exposição que faz antever as críticas e a discussão que o assunto viria a envolver ou já então envolvia, como se pode ver na longa carta que dirigiu à população, a 24 de Março de 1923:
Por uma Corporação de Bombeiros
Na América rara é a terra dum certo número de fogos que não tem uma Corporação de Bombeiros.
No nosso país, também já, muitas localidades duma certa categoria têm, mais ou menos rudimentar, a sua corporação de salvação pública.
Demonstrar a utilidade e a grandeza de benefícios que presta uma instituição desta ordem em qualquer região, achamos supérfluo, tanto mais que, melhor do que nós há outros e estes que façam a sua prova nos jornais do concelho pois estamos convencidíssimos que os seus dignos directores a isso não se opõem, antes pelo contrário.
O que vamos tratar agora é de lembrar o que se está passando em Coimbra que, coagida a compreender – após a enorme catástrofe última - a utilidade de montarem uma corporação á altura das suas necessidades, orientou-se de forma tal que está já em perto de 60 mil escudos a subscrição aberta para tal fim.
Ora, Estarreja não é uma terra de cafres consequentemente precisa e deve ter o seu, embora elementar, corpo de salvação pública, para o que sobejam rapazes cheios de valentia, de vida e de altruísmo como a própria terra tem demonstrado exuberantemente. Nada de empatas nem de descrentes.
Compre-se o material necessário por subscrição, já que a Câmara Municipal não pode fazê-lo, e entregue-se depois tudo aos cuidados da mesma Câmara com a obrigação de honestamente velar pela sua conservação para a qual a despesa é pouquíssima ou então não entendendo assim os seus angariadores procedem como em tais casos é costume – Uma Corporação Independente.
O gasto para isso não é muito pois basta termos uma ou duas bombas Flaut, as chamadas bombas de picota, dois a quatro chupadores, quatro agulhetas e uma centena de metros de mangueira, fora uns croques, escadas, alviões, machados, etc. etc.
Seria coisa superior obter-se um chassis de automóvel, mesmo antiquado, e montar-se nele uma bomba americana, que tendo um pequeníssimo volume tira de um poço 300 a 300 litros d’água em cada minuto arremessando-a com uma pressão enorme a grande distância.
Talvez os nossos patrícios de além-mar pudessem por subscrição obtê-la na própria América e aqui conseguir-se dos poderes públicos a sua entrada livre de direitos.
A formação dum agrupamento desta natureza tem, anda, o bem de habilitar rapazes a saberem conduzir, em presença de um fogo, como o devem atear, como o tem de localizar, como se evita a sua propagação, enfim, como salvar e socorrer o seu semelhante, etc. etc.
Assim, no estado em que se encontra Estarreja sem a menor noção de como cada qual deve proceder à vista dum fogo é que não pode ser de maneira alguma nem faz sentido simplesmente porque não é próprio de estarrejenses viverem como selvagens sem recursos que todos os povos que se dizem civilizados devem ter hoje ao seu alcance.
Agora resta-me pedir a todos, quer estejam na terra quer longe dela, em nome das pessoas mais queridas que têm aqui, que indiquem neste jornal, desde já, o quantitativo com que contribuem para a compra do material necessário para a formação da Corporação de Bombeiros, porque procedendo assim serão verdadeiros beneméritos.
Termino por rogar aos dignos proprietários de todos os jornais da comarca que conjuntamente com o Sr. Presidente da comarca e de todos os representantes no concelho das companhias de seguros se constituam em comissão competente fazendo o digno representante do Município o convite respectivo para darem imediatamente começo aos trabalhos. Pode a digna comissão contar, é claro, com o que em tempos ofereci no «Jornal de Estarreja».
Dr. Santos Reis
Subscrição
Para a compra de material de bombeiros
Dr. Santos Reis 200$00
Dr. Tavares A. e Cunha 200$00”
O objectivo, apesar de consensual, criava trocas acesas de argumentos, de que apenas nos chegaram as respostas do Dr. Santos Reis, a classificar como “empatas”, terceiros, de quem a história não conservou a sua identidade. A 7 de Abril de 1923 o estarrejense, radicado em Lisboa, escrevia assim:
Não, já agora ilustres empatas, tenham paciência, mas isto deve ir, pelo menos, até ao fim.
A garantir esta nossa convicção estão os nomes dos Ex.mos Srs. Dr. Egas Moniz, lente da Faculdade de Medicina de Lisboa, entre os mais distintos; Tavares Afonso, um verdadeiro benemérito, a quem Estarreja muito deve, Padre Donaciano de Abreu Freire, grande alma e um dos mais entusiastas para que o Hospital seja uma realidade e muitos outros (…) o Dr. Vidal, mui digno vice-presidente da Câmara dos Deputados – cavalheiro de cotação entre os cotados – Conde d’Azevedo (…), Visconde de Salreu (…), Pinto (Gerente da Casa Bancaria Souto Maior); Marques Rodrigues, Dr. Henrique e Guilherme Souto (…).
Estarreja por sua honra e por dignidade dos seus próprios filhos tem que ter um Hospital, embora rudimentar, casa sem ser espectaculosa e sem luxo mas acolhedora, e um corpo de Salvação Pública.
Depois de mais de um ano de subscrições públicas, indecisões e polémicas futura sobre a propriedade do equipamento, um grupo de estarrejenses avança para um peditório porta-a-porta, com o objectivo de comprar o primeiro material para os Bombeiros Voluntários de Estarreja.
O “Concelho de Estarreja”, no seu número de 26 de Julho de 1924, dá relato da primeira apresentação pública do material adquirido com a ajuda do povo e que fora realizada a 13 de Julho de 1924: cerimónia solene no edifício da Câmara Municipal, a que se seguiu um exercício dos Bombeiros de Aveiro, na casa do Sr. José Gonçalves Carvalho:
Bombeiros de Estarreja
De há muito que já vem sendo debatida na imprensa local a necessidade do estabelecimento neste concelho de uma corporação de Bombeiros Voluntários.
Assunto palpitante e de máximo interesse para a nossa terra, que é todo o concelho, por algumas vezes já escritores vários o têm versado nestas colunas, em especial, o Ex. Sr Dr. Santos Reis e Pereira Bravo, que têm procurado incutir no ânimo de todos os estarrejenses a necessidade imperiosa de levar por diante esse imprescindível melhoramento, chamado para ele a atenção de todos os que por este rincão se interessam.
Coube a vez agora a um grupo de cavalheiros que, pondo de parte todos os comodismos se organizaram em comissão e de porta em porta, com uma dedicação muito louvável e assaz patriótica conseguiram lançar as bases dessa instituição humanitária e altruísta, tendo visto coroados do melhor êxito os seus esforços na santa cruzada em que se vêem empenhando.
Entre esses nomes figuram pessoa de prestígio como os Ex.mos Srs. Dr. Almeida Lima, João Pinheiro Mourisca, digno secretário de Finanças deste concelho, António Souto Temudo e outros que com eles irmanados têm sido duma dedicação muito para respeitar.
Confiados no pleno êxito da obra que a tosos se impõem e conseguida a maior parte da verba para a aquisição dos utensílios indispensáveis, trataram de fazer a compra do respectivo material, organizando em seguida a primeira festa de ensaio com exercício dos bombeiros de Aveiro, como incentivo e instrução dos futuros membros dessa corporação humanista, que neste concelho há-de criar raízes e fortalecer-se pela acção altruísta dos seus membros.
Constou essa festa de sessão solene na sala das sessões da Camara, seguindo-se depois um exercício dos bombeiros de Aveiro, que gentilmente se ofereceram a vir apresentar ao povo de Estarreja as provas de abnegação pela humanidade, quando chamados a socorrer o seu semelhante, prestes a ser devorado pelo inimigo comum.
O ilustre presidente da Câmara Ex.mo Sr. Dr. Guilherme Souto, abrindo a sessão, num discurso brilhante de eloquência deu as boas vindas aos bombeiros aveirenses, discurso que foi ouvido em religiosa atenção pelas centenas de pessoas que se apinhavam no salão da Câmara.
Seguiu-se depois o Sr. Dr. Almeida Lima, que leu o pequeno discurso de incitamento ao povo de Estarreja que em breve a corporação de bombeiros seja um facto, melhoramento pelo qual sua Ex.ª está disposta aos maiores sacrifícios.
Falaram depois os Ex.mos Srs. Dr. Barata, ex-presidente da Câmara e Dr. Alberto Ruela, presidente da Associação dos Bombeiros Voluntários de Aveiro.
Ambos tiveram frases repassadas de sentimento e de fé inquebrantável no conseguimento desse beneficio para este concelho a que os ligam os laços mais sagrados de veneração e respeito.
Encerrou a sessão o Sr. Dr. Guilherme Souto, que, agradeceu a todos o concurso que vinham prestando a essa magnifica obra, especializando as gentis senhoras que por ela sacrificaram o seu comodismo e o seu sossego, dando-lhe o seu valiosíssimo concurso, que era grande, incomparável.
Sua Ex.ª teve passagens belíssimas, frase tão brilhante e colorida que a nossa débil memória e pena mais débil ainda não sabem nem podem descrever.
Por todos os oradores foram levantados entusiásticos “vivas” à cidade de Aveiro, à Associação dos Bombeiros Voluntários de Aveiro e o seu comandante, à Câmara e povo de Estarreja, etc.
No átrio a filarmónica pardilhoense executava o hino nacional.
Logo depois procedeu-se aos exercícios na casa do Sr. José Gonçalves Carvalho, trabalhos esses, que arrancaram muitas palmas aos milhares de assistentes, que se achavam presos da maior comoção.
Oxalá todos se compenetrem de que é preciso concorrer para tão alevantado fim, sujos alicerces estão cimentados no patriótico esforço, de um grupo de homens conscientes, cheios de fé no engrandecimento deste concelho, um dos mais belos, mas também mais esquecidos do país.
Curiosamente é este 13 de Julho de 1924 que marca o arranque dos Bombeiros Voluntários de Estarreja, embora a sua constituição legal seja posterior. Oficiosamente nascidos os Bombeiros Voluntários de Estarreja, não estava ainda legalmente constituída a Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de Estarreja.
Saiba mais no livro comemorativo dos 90 anos dos Bombeiros Voluntários de Estarreja.